sábado, 19 de março de 2011

Dia 27: a estranha mania de ter fé na vida...

Diana escreveu o post abaixo encorajada por uma amiga que nos escreveu dizendo que gostava de ler o blog para saber “como Daniel está”, mas se perguntava “como estará Diana?”
Segue o relato.

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Conviver com uma doença dita incurável na vida de quem a gente ama exige uma força que temi às vezes que fosse me faltar. Todos vivemos com a incerteza do amanhã, mas uma doença como essa é a lembrança cotidiana disso: a certeza da incerteza sobre o que nos reserva a vida. Quantas vezes me senti tão pequena, sem saber o que fazer para acolher a dor ou o sofrimento de meu companheiro… lágrimas, silêncio, respirar fundo e deixar o tempo fazer sua parte, buscando controlar a ansiedade... não há ciência que ensine, nem experiência que tranquilize, aprendo tudo de novo a cada dia com cada nova dor, cada novo sintoma. E aprendo, acima de tudo, com ele: que não adianta nada desesperar e que sempre posso me levantar, não importa o quão difícil seja.

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O mais difícil na medicina ocidental é a insistência em se tratar sintomas e não causas de doenças. Isso se torna ainda mais dramático quando se trata de uma doença para a qual a medicina ainda não tem cura e quando os medicamentos indicados visam estancar os sintomas, com diversos efeitos colaterais e desconhecendo o que os causaram.

Quando soube que havia algo que podíamos fazer para lutar ativamente contra essa doença, aprendi o que pude a respeito. E aqui estamos… motivados pelo comovente apoio de tantos amigos, nunca nos sentimos sozinhos; mergulhados na contradição aparente de um paradigma de cura tão diverso ao da medicina alopática; animados e temerosos, ansiosos e (quase) serenos, vivendo uma experiência inominável.

O que tem sido mais difícil é internalizar a idéia de um processo de cura não-linear, com pioras e melhoras se intercalando, dores agudas repentinas, fadiga… todos os médicos (e pacientes que já vieram outras vezes) dizem que os resultados dos tratamentos só se consolidam com o tempo, persistindo na dieta, tomando os remédios que levamos para 6 meses, praticando yoga e pranayamas… Para o ayurveda, todas as doenças são resultado de um processo de desequilíbrio que começa mesmo antes da doença ser diagnosticada, em sintomas que as pessoas às vezes não dão tanta importância, mas que são parte de um processo de adoecimento do corpo. Da mesma forma, a cura se dá com uma mudança dos hábitos que intensificaram o adoecimento; e se dá ao longo do tempo, sem a linearidade que esperamos dos medicamentos alopáticos. Então, nesse momento, o essencial pra nós é ter serenidade e disciplina.

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Um amigo nos disse que na tradição indiana desde o sânscrito, o tempo não é linear e sim circular. Ironicamente, experimentamos isso aqui através da rotina do tratamento: horário pra tudo, cada dia parecendo o mesmo, o tempo parece suspenso… com a nossa ida cada vez mais próxima, não consigo evitar tantas lembranças que podem ter ocorrido a qualquer momento destes já 27 dias: do lindo festival no templo de Shiva e a ajuda dos devotos em guiar-nos no percurso; da corajosa jovem croata que veio ao hospital sozinha com a filha de 1 ano e meio porque não tinha com quem deixá-la e contava com a solidariedade dos outros pacientes de cuidar da menina enquanto ela fazia os tratamentos; das pessoas que compartilharam conosco suas histórias de cura; do casal de mulçumanos indianos que disseram tantas vezes que rezavam por nós em suas idas à mesquita; das manifestações do Partido Comunista da Índia (Marxista) – PCI(M) – na rua por causa das eleições que se aproximam; do dia em que usei um sari pela primeira vez e fui cercada por funcionárias, médicas e pacientes sorridentes; dos risos satisfeitos de todos os funcionários quando dizemos “obrigada/o” em malayalam… tantos momentos que a alma ainda absorve aos poucos, assim como o corpo absorve os tratamentos a seu tempo.

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Uma das coisas que mais me encantam no Kerala é a força das mulheres. Aprendemos em conversas por aqui que alguns grupos daqui tinham uma tradição matrilinear (ainda que não matriarcal, fato que historiadores e antropólogos afirmam jamais ter ocorrido em qualquer sociedade) antes da independência da Índia. As mulheres no Kerala gozam de uma autonomia pouco encontrada no resto da Índia. Ainda que o machismo seja bastante presente, as mulheres têm muita força nessa parte do país e participaram ativamente nos processos políticos durante a independência, e até hoje. No entanto, no processo pós-independência, pelo que me contaram, a construção da unidade do Estado-Nação também se deu através da imposição de uma homogeinização nas práticas patriarcais, levando a algum nível de enfraquecimento da tradicional maior autonomia das mulheres do Kerala.
Como estou também internada neste hospital com tanta sabedoria, decidi me tratar para as dores de coluna, estresse e crises de insônia agravados pelos longos vôos e mudanças de fuso horários constantes por causa do trabalho nos últimos anos. Durante o tratamento, enquanto as mulheres de nome tão difícil de pronunciar, de sorriso fácil, e parco inglês, pressionam meu corpo com óleo medicado, me pergunto “de que falam em malayalam? que questões as preocupam? quantos corpos adoecidos por modos de vida frenéticos, estas mãos persistentes terão ajudado a curar?”

Nas poucas palavras que conseguimos trocar, nos sorriso acolhedores, sinto tanta vontade de compartilhar com elas…
Quando uma das médicas me ajudou a vestir o sari, senti sua emoção e cuidado. Em poucos minutos, outras funcionárias batiam na porta do quarto pra me ver vestida de sari, todas sorridentes e calorosas, segurando meu rosto entre as mãos. Quando agradeci em malaylam o carinho de uma delas, ela me disse “nada de obrigada, somos irmãs.” Como é fácil se sentir em casa aqui…


4 comentários:

  1. Olá, Daniel e Diana!
    Estou lendo um livro chamado "A arte de fazer milagres" de Paul Persall, da grande editora Pensamento, que sempre nos dá grandes alegrias.
    Na pág. 38 deste livro, no segundo parágrafo, o autor escreve:
    "... diga, às pessoas em crise que elas não precisam adotar uma 'atitude positiva' para resolver os seus problemas. A depressão, o medo, a desesperança e a raiva são sentimentos tão importantes para a cura como a esperança, a felicidade e o bom humor. O princípio da complementaridade nos ensina que existe um aspecto dualístico em todas as coisas. Os altos e baixos, a felicidade e a tristeza, a esperança e o desespero são todos elementos importantes para atravessarmos o período conturbado que acompanha uma crise ou doença."
    Fiquem com Deus, que está tudo certo. Falous?!?
    Abraçãosãos e hablamos

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  2. Quando chegarem vou retirar-usufruir da força de vocês pra pegar os dois no colo!!!!

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  3. Abraços e que tudo caminha para além da compeensão, mas para a sensação de que algo caminhou para outra direçâo e aconteceu outro algo maior ainda e melhor.
    Felicidades aos D2; Daniel e Diana.
    Fiquem com a Paz e a Tranquilidade,
    Soninha da Suiça. Em 22/03/2011

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